terça-feira, 5 de novembro de 2013

A democracia é possível aqui?

Dworkin tem livro cujo título corresponde ao desta postagem.


Nele, publicado já faz algum tempo, mas ainda atualíssimo, é feita uma crítica à forma como se discutem questões de interesse da coletividade nos Estados Unidos. As pessoas são "rotuladas" prévia e apressadamente, de forma simplista, e colocadas em dois grandes blocos. Se o sujeito é a favor do aborto, por exemplo, então deve ser também, necessariamente, favorável a: i) aumento de impostos; ii) desarmamento; iii) casamento entre pessoas do mesmo sexo; iv) regulação ambiental, trabalhista, de proteção ao consumidor etc. Além disso, esse sujeito deve gostar de vinho e morar na costa leste americana. Se, porém, o sujeito for contra o aborto, então, necessariamente, além de morar na costa oeste e curtir cerveja e corrida de carros, deve ser também contrário a: i) aumento de impostos; ii) desarmamento; iii) casamento de pessoas do mesmo sexo (e à homossexualidade em geral); iv) regulação estatal de qualquer tipo. Como se o "pacote" de valores só pudesse ser acolhido e defendido em bloco.

A crítica de Dworkin é que essa "polarização" do debate faz surgir um grupo de "azuis" e um de "vermelhos", os quais simplesmente não debatem mais um com o outro. Dworkin propõe, então, que se tente promover um debate racional, que parta de um contexto comum de metas em torno das quais todos estejam de acordo, ainda que estas tenham que ser mais genéricas, transferindo-se a discussão para como implementá-las. Além disso, ele destaca o óbvio, mas que muitos se recusam a ver: nem sempre uma pessoa, porque é contra o aborto, será obrigatoramente favorável a limitações ambientais, ou a um aumento de impostos, por exemplo, e vice-versa.

O livro é muito bom, e merece a leitura, mas este post nem é, propriamente, para falar dele. A lembrança vem apenas a propósito de que, no Brasil, parecemos caminhar para o mesmo rumo. Se uma pessoa se mostra contrária ao aumento assustador da violência urbana, por exemplo, então ela, necessariamente, deve ser, também: i) favorável a que se degrade o meio ambiente em prol do desenvolvimento urbano; ii) religiosa; iii) defensora da manutenção das desigualdades sociais; iv) alienada cultural e socialmente; v) contrária à homossexualidade e defensora de valores tradicionais e conservadores. E, de outro lado, se o sujeito é defensor do meio ambiente, ou de causas sociais que promovam uma redução das desigualdades, então também é, necessariamente, um maconheiro, ateu e desocupado igualmente favorável a: i) legalização da maconha; ii) casamento entre pessoas do mesmo sexo; iii) implantação imediata do socialismo. E, o pior: como cada lado de um debate em torno de qualquer desses temas vê o adversário como o "estereótipo" do intransigente defensor dos assuntos opostos "em bloco", simplesmente não há debate. Diz-se: - Ah! Não vou chamar o fulano para o debate, pois ele é um burguês conservador! Ou então: - Convidar o beltrano? Nunca! É um esquerdista radical! E, assim, direita (como se existisse "uma") só debate com direita, e esquerda com esquerda, de modo a só ouvir elogios e aplausos, com pequeníssimas divergências internas.

É preciso lembrar, como diz Dworkin, que o debate democrático, para acontecer, deve, além de respeito e educação, pressupor que as pessoas são diferentes, e não precisam defender teses "casadas" ou "em bloco". Se há conservadores elitistas entre os que se põem contra a violência e exigem medidas imediatas do Poder Público, isso não significa que o sejam todos, até porque o problema atinge a pessoas de todas as classes, sobretudo às das menos favorecidas. Do mesmo modo, se há maconheiros desocupados entre os que defendem o meio ambiente, isso não significa que os sejam todos, nem que entre estes não haja, também, pessoas contrárias à violência. E, mais importante, o fato de o sujeito ser conservador elitista, ou maconheiro desocupado, não é razão para se lhe desacreditarem os argumentos, como há séculos os que se ocupam da lógica tentam explicar quando tratam das falácias, principalmente da ad hominem. É preciso debater, e não simplesmente querer matar quem pensa diferente, como parecem entender muitos dos que debatem tais assuntos, principalmente na internet. É muito comum ver pessoas favoráveis à liberdade de expressão, defendendo-a ardorosamente, desde que para expressar pensamentos com os quais concordem.

No "identidade e violência" (já comentado no blog - clique aqui), Amartya Sen igualmente alerta para o perigo dessas polarizações, que intensificam a agressividade e dificultam a empatia e o debate. É preciso perceber - diz Sen - que cada indivíduo faz parte de vários grupos na sociedade, pois sua individualidade decorre de inúmeras características, as quais não estão todas presentes da mesma forma - mas tampouco todas ausentes - em nenhuma outra pessoa. Se dois sujeitos parecem, em certo contexto, ser membros de grupos diferentes (e por isso se vêem como adversários), quando, por exemplo, defendem ideologias políticas diferentes, devem lembrar que podem ser "colegas" em outro grupos, como ocorre quando têm os mesmos hobbies, torcem para o mesmo time, nasceram na mesma cidade, têm as mesmas crenças religiosas ou parente que padece da mesma doença. A atenção para a existência de pontos em comum, e não só para as divergências, facilita a empatia e o debate. É o que  parece estar faltando por aqui.
 
 
 
Para aprofundar:
 

Clique aqui para comprar "Identidade e Violência", de Amartya Sen 

Clique aqui para comprar "Is Democracy Possible Here?", de Ronald Dworkin.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Direito Francês

A Aliança Francesa está oferecendo mini-curso sobre noções de Direito Francês, com o apoio da Faculdade de Direito da UFC. O mini-curso é aberto e gratuito, destinando-se aos alunos da graduação e da pós-graduação da UFC, mas dele podem participar também alunos de outras IES, servidores, professores, advogados, juizes e quaisquer outros interessados.

Hoje pela manhã foi dada a primeira aula, sobre o funcionamento da Justiça na França (estrutura judiciária, noções rápidas de processo civil e penal na França etc.). Amanhã às 19:00 será a palestra sobre Direito Penal e, na Quarta, também às 19:00, sobre Direito de Família. É uma excelente oportunidade não apenas de conhecer um pouco da realidade francesa, mas especialmente para perguntar à professora questões específicas, como fiz hoje a respeito de precatórios e sobre a defensoria pública, e o Prof. Juvêncio fez em torno das tutelas de urgência. E, como se não bastasse, ainda se tem a chance de aprender um pouco sobre expressões técnicas específicas nesse idioma.

A Professora é:
Maître Sylvie PANETIER
Avocat spécialiste en droit pénal
Maîtrise en droit privé (faculté de droit université de CAEN)
DEA de philosophie du droit (université de Paris II)
Ancienne chargée de travaux dirigés en droit civil
1ère année AES à la faculté de droit de l'université de CAEN
Chargée de formation par l'École des Avocats du Grand Ouest (RENNES)

As palestras acontecerão na "Sala de defesas" do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC. A professora fala em francês, mas a aliança francesa enviará um profissional que fará a tradução simultânea. Para informações adicionai, clique aqui.

***

A propósito da aula de hoje, duas coisas chamaram a minha atenção.
A primeira foi o funcionamento da assistência judiciária aos pobres. Em vez de Defensoria Pública, aquele considerado pobre (na França, quem aufere rendimentos mensais inferiores a 920 euros) pode escolher o advogado que quiser, esclarecendo-se, no ato da contratação, de que se trata de alguém assistido pelo Estado, a quem caberá o pagamento dos honorários. O advogado, por sua vez, é livre para aceitar ou rejeitar a causa, sendo os seus honorários pagos com base em tabela previamente divulgada pelo Judiciário. Esse parece ser o padrão seguido na maior parte dos países do mundo. Já ouvi colegas brasileiros dizerem que se trata de modelo infinitamente mais eficiente que o nosso, mas ainda não tenho elementos suficientes para me posicionar. De qualquer modo, é bom saber como problemas semelhantes às vezes têm soluções diferentes, sendo útil a todos os envolvidos conhecer as alternativas que uns oferecem aos problemas dos outros.

A segunda foi, como sempre, a questão dos precatórios.
Sempre que encontro alguém de outro País, da área jurídica, pergunto como o Estado paga as suas dívidas decorrentes de condenações judiciais. A pergunta, geralmente, causa perplexidade. As pessoas não entendem a pergunta, e devolvem algo como um "como assim?". Hoje não foi diferente, tendo a professora, depois de alguma incompreensão com a pergunta, respondido que na França o Estado discute, quando considera ter razão para não pagar, mas, vencido, simplesmente paga, imediatamente. Simples assim. Mas a curiosidade foi dela, depois, diante da nossa reação à sua resposta. Devolveu: - E aqui, como funciona? Expliquei a ela os nossos precatórios, mas não sei se ela entendeu. Talvez minha explicação não tenha sido boa, mas talvez a nossa execução contra a Fazenda seja mesmo inexplicável...

De uma forma ou de outra, aproveito o espaço do blog para dividir esta impressão da palestra de hoje, e convidar a todos para participar das próximas duas.

domingo, 6 de outubro de 2013

Tudo é linguagem?

Há respeitável corrente, no domínio da Filosofia, que se estendeu, no caso do Direito, notadamente para o Tributário, por influência de respeitabilíssimos autores, como Paulo de Barros Carvalho, segundo a qual tudo é linguagem. A premissa, em rápidas palavras, é simples: o mundo 1 (Popper), de fatos brutos (Searle), não nos é acessível diretamente. Não vemos a realidade "como ela é". Isso Kant já havia evidenciado: vemos a realidade como os nossos sentidos, que são imperfeitos, nos mostram. Mas, com a virada linguística, foi-se além: vemos a realidade transformada em linguagem, vale dizer, interpretada. Além da interferência gerada pela imperfeição dos sentidos, há aquela gerada pela intermediação da linguagem. Até aí, tudo bem. O problema é que, daí, parte-se para uma noção de que tudo é linguagem, uma linguagem auto-referencial, sendo irrelevante - porque inacessível - qualquer dado empírico extralinguístico. Não importa o mundo dos fatos, mas só o que dele tiver sido "convertido em linguagem". A verdade deixa de ser aquela propriedade do enunciado que corresponde à realidade para se tornar apenas o "relato vencedor".

Existem limitações óbvias na tentativa de resumir algo tão complexo em poucas palavras, mas acredito que, para os propósitos deste texto, a resenha está satisfatória.

Sabe-se que, mais recentemente, a neurociência tem feito avanços interessantes nessa área. Materializa-se a previsão de Freud, de que a biologia confirmaria muito de suas ideias em relação à mente humana, mas que revelaria que outras eram equivocadas, ingênuas até. Talvez eles, esses avanços, mudem consideravelmente a forma como se compreende a linguagem e a cognição humanas. Mas, sem entrar, ainda, em tais avanços da neurociência, que ficarão para outro post, é o caso de examinar algumas questões interessantes que decorrem das ideias lançadas no primeiro parágrafo deste texto, mesmo se se admitirem as premissas filosóficas traçadas nele.

Quanto à questão de saber se tudo é linguagem, parece claro que não. E quanto mais os críticos avançam ao apontar os defeitos dessa visão, mais seus defensores recuam, primeiro a reconhecer que a linguagem não é só a textual, mas também outras, como a corporal, chegando-se a admitir como signo qualquer coisa a que se possa atribuir sentido, sendo linguagem o próprio pensamento. Daí dizer-se que, se não é pensado, não existe (para o pensante, pelo menos, temos que admitir). Steven Pinker refere-se a um "mentalês", para designar a linguagem da mente existente antes mesmo do aprendizado da linguagem falada ou escrita, e que subsiste "por trás" da linguagem verbalizada ou simbólica, o que autoriza praticamente a se equiparar linguagem a pensamento racional. Mas, caso se admita isso, não se poderá dizer, por exemplo, que algo não existe se não tiver sido transformado em linguagem competente.

Mas, se associamos linguagem a pensamento, ou pelo menos àquele que pode se exprimir por linguagem (opa! então ela não é "o" pensamento que por meio dela se exprime), esbarramos no primeiro problema: há sentimentos, ou sensações, que NEM SEMPRE se podem exprimir em linguagem, mas não obstante existem e sabemos disso. Essa idéia, que está na base da estética, foi traduzida de forma sublime por Cervantes, na seguinte fala de Sancho:

„ – Sabereis, amigo, que nós outros, os escudeiros dos cavaleiros andantes, andamos expostos a muitas fomes, além de outras desgraças e coisas que melhor se sentem do que se explicam.“


Vejam. Cervantes não transformou em linguagem, no caso, as realidades inexprimíveis em linguagem. Ele apenas chamou a atenção para a existência delas. Mas não sabemos quais são pela linguagem, que não as explicaria. Precisamos senti-las. Se linguagem é sinônimo de pensamento racional, subsistem, à toda evidência, sentimentos, sensações e uma série de outras realidades "inexprimíveis", cuja existência testemunhamos de alguma outra forma. Italo Calvino, por exemplo, refere-se ao inconsciente como "o oceano do indizível".




Mesmo que se amplie o conceito de linguagem ainda mais, para incluir inclusive o que é sensível mas é inexprimível, há outro exemplo de limitação da visão de que "tudo é linguagem": o desconhecido.

Se tudo é linguagem, porque só existe para a criatura humana o que é transformado em linguagem, o que não foi transformado em linguagem simplesmente não existe. Logo, toda a realidade é conhecida, o que significa dizer que não existe o desconhecido, nem, com ele, a ignorância humana. É preciso, evidentemente, admitir a existência de algo "extralinguístico ainda não transformado em linguagem" para admitir a ignorância e a necessidade de se tentar diminui-la. Do contrário, se o que não foi convertido em linguagem não existe, procuraremos continuar pesquisando para descobrir coisas novas com base em quê? 

O desconhecido existe. Paradoxalmente, não o conhecemos, mas sabemos que ele existe. É o que Rescher chama de "paradoxo do prefácio". Nos prefácios, os autores de livros geralmente pedem desculpas pelos erros, que sabem presentes em seus livros. Seria o caso, porém, de indagar: se conhecem os erros, e sabem que são erros, por que não os corrigem?! Simplesmente porque sabem que existem os erros, mas não sabem, ainda, onde estão. Assim caminha o conhecimento: a humanidade sabe que existe o desconhecido, pois é ele que torna o conhecimento atual provisório e falível, mas, enquanto esse desconhecido assim permanece, não se altera o que até agora se sabe, que representa o máximo do que se conseguiu alcançar. Essa é a base do falibilismo de Karl Popper, um meio termo equilibrado diante das dificuldades de conhecer o real apontadas no início deste texto, e que tem como extremos (que quase se tocam) o ceticismo (se o conhecimento é falho, tudo é certamente falso, desde vacinas, tratamentos para o câncer etc.) e o anarquismo epistemológico (se o conhecimento é falho, tudo pode ser verdadeiro, sendo a astrologia e o vodu tão válidos quanto os antibióticos e a necessidade de assepsia nos Hospitais).

Ainda no caso especificamente do Direito, pode-se acrescentar, como faz Goyard-Fabre: de onde, da linguagem, tira-se a obrigatoriedade do Direito? É porque certas frases são, linguisticamente, imperativas? Mas onde na linguagem se acha a necessidade de serem obedecidas? É preciso recorrer a algo diverso da linguagem para respondê-lo.


Como diz Taruffo, a visão de que tudo é linguagem, uma linguagem "auto-referencial" que despreza qualquer referencial empírico extralinguístico, não passa de uma visão atualizada do idealismo. Se a verdade dos fatos é estranha aos defensores de tal teoria, que a consideram "irrelevante" (verdade é apenas um relato vencedor), tem-se, diz Taruffo, uma prova da notória deficiência dessa teoria, e não da inexistência do problema da verdade.

Daí decorrem, ainda, outros problemas. Se se admite que a verdade é apenas um relato vencedor, pois tudo é linguagem, torna-se problemática a definição de ciência como algo descritivo (ainda que não "meramente") de uma realidade, pois perde-se o referencial a partir do qual seria possível cogitar de alguma objetividade, ou mesmo intersubjetividade, o que foi apontado por Humberto Avila, em texto que até mereceu uma resposta de Paulo de Barros Carvalho. Por coincidência, crítica semelhante me dirigiu Diego Bonfim, em relação ao meu "Por que dogmática jurídica?", pois entendia ele que não se partindo do texto como um dado inalterável não seria possível o próprio discurso científico, crítica que, acredito, respondi em post específico, mas que, paradoxalmente, agora se volta contra o marco teórico que ele adotava à época, sob a forma de uma contradição interna. Mas isso, junto com os elementos de neurociência antes mencionados, é assunto para outro post. Ou, talvez, para artigo mais longo, pela necessidade de referências e extensão incompatíveis com os propósitos informais e lúdicos deste espaço, que usei apenas para pensar alto e desde logo partilhar - sobretudo para ouvir ou ler quem quiser criticar - tais ideias.

Quanto à crítica, aliás, se não descambar para a falácia, notadamente a ad hominem (que, paradoxalmente, enfraquece a si e ao seu autor, e não a quem se pretende criticar), ela deve ser vista com positividade. É a crítica que enseja o progresso do pensamento humano, devendo-se submeter as ideias ao mesmo processo de seleção natural que, em um ambiente hostil, seleciona os organismos mais aptos. Como mostra a epistemologia evolutiva popperiana (e, aliás, bem antes dele, ainda em 1937, a de Pontes de Miranda), foi assim que os animais "aprenderam" a ver, ouvir, correr, digerir, enfim, sobreviver, e é assim que a humanidade segue aprendendo, só que, com a ciência, sem a necessidade de sacrificar os indivíduos que acolhem ideias equivocadas: morrem as ideias, mas não se matam seus autores.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Positivismo, judiciário e democracia

Já faz algum tempo, falar mal do positivismo entrou na moda. Ainda que o crítico não saiba muito bem do que fala; ou apenas ecoa.
Não que ele não tenha defeitos, o que por certo não é o caso. Mas alguns críticos apontam defeitos que ele não tem, a exemplo de "levar a interpretações literalistas". Sabe-se, com um pouquinho só de estudo, que o "discricionarismo do intérprete" é uma das características das várias correntes positivistas. Quem já leu o último capítulo da Teoria Pura do Direito, e viu algo sobre uma tal "moldura", sabe do que se está falando.
Outra crítica é a de que o positivismo seria "conservador", sendo usado pela burguesia para manter o status quo. Ela aparece e reaparece de vez em quando.
Não duvido que isso possa ter acontecido, e ainda acontecer, mas sempre tenho ressalvas com tais afirmações assim tão simplistas. Geralmente - mas nem sempre! - abordagens marxistas, ou com influência marxista (mas não só elas!), têm essa característica. Tudo é muito simples, tendo sido causado pela burguesia e pelo capitalismo, que seria a causa de toda a desgraça existente no mundo, até mesmo daquelas anteriores à própria humanidade... Quanto mais se estuda mais se vê, na verdade, o quanto a realidade é complexa, existindo causas e fatores os mais diversos, muito mais amplos e interconectados do que o modesto aparato neurológico humano é capaz de compreender. No caso específico do suposto conservadorismo do positivismo, no Direito, fosse verdade que um maior "desapego" do juiz ao direito posto permitiria as tão desejadas "mudanças sociais", seria o caso de indagar: não é o Judiciário, em regra, pelo menos nas democracias, uma instituição mais distante do povo, e mais próxima das (ou pelo menos mais acessível às) classes mais favorecidas, se comparado ao parlamento? É preciso cuidado, pois o tal "desapego" do juiz à lei pode, do mesmo modo, conduzir o conservadorismo a reprimir ou conter saudáveis mudanças sociais introduzidas pela via legislativa. Quem conhece a jurisprudência da Suprema Corte Americana do período do New Deal sabe disso.
Em conclusão, não se quer, com este post, defender o positivismo. Tampouco criticar ou defender o ativismo judicial. O propósito é, tão somente, o de clamar à crítica responsável, que tente (porque conseguir é impossível) levar em conta todas as variáveis possíveis no enfrentamento de qualquer problema.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Dia do blog

Dia 31/8 foi o "dia do blog", e eu nem fiz uma postagem específica. Mas ainda há tempo de fazê-lo.

Esse veículo parece ter sofrido um pouco com o advento do facebook, onde as pessoas postam com mais facilidade certos assuntos ou arquivos e compartilham com quem lhes interessa. Mas ainda há espaço para as duas formas de expressão na internet, que têm usos que não se sobrepõem. As postagens no blog são mais perenes e de mais fácil localização e acesso por meio de mecanismos de busca, estando, de resto, disponíveis mesmo para quem não faz parte do círculo de "amizades" de quem as faz, em qualquer parte do mundo.

Em relação a indicação de blogs, algo costumeiro no "dia do blog", já indico, no gadget ao lado, alguns  de minha preferência. Aproveito o ensejo para indicar outros, não jurídicos, mas relacionados a assuntos igualmente interessantes:


 


Em relação ao primeiro, recomendo, especificamente, a série "inkcyclopedia", que tem análises muito interessantes sobre as mais variadas tintas. Sim, é possível avaliá-las por critérios tão complexos (e pertinentes!) quanto os que se usam para julgar vinhos, por exemplo. No caso das tintas: a cor, a rapidez com que secam, a aptidão que têm para não atravessar o papel, ou para não se espalhar para além de onde passou a caneta, apenas para citar alguns exemplos. Há tintas fantásticas nesses quesitos (v.g., J. Herbin Rouge Hematite, Lindauer Blau), e outras nem tanto (v.g., Noodler´s Mandalay Maroon).

E, a propósito do dia do blog, recebi, em virtude dele, gentil presente da Faber-Castell. Um pacote com duas canetas esferográficas suaves e com boa escrita, três pincéis para quadro branco (azul, preto e vermelho) que usarei em minhas aulas na Faculdade de Direito da UFC, uma lapiseira, e duas canetas marca-texto de gel (não são hidrográficas, assemelhando-se a um lápis de cera de cor vibrante e meio transparente. Muito bom para evitar manchas e borrões em livros a terem trechos marcados). Juntei-os à minha coleção de itens de escrita, na qual já há boas tintas da marca para canetas tinteiro. Mesmo em tempos de iPad, Kindle e eBooks, ler e escrever em papel ainda tem o seu valor, assim como tomar notas, grifar e rabiscar livros, monografias, teses e dissertações. Sou à Faber-Castell muito grato pela lembrança.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

As origens da moral

Dizem que os europeus, em razão da fauna natural de sua região, durante muito tempo não tiveram contato com primatas superiores, a exemplo de chimpanzés, bonobos ou gorilas. Isso talvez tenha acentuado a visão, que é quase um lugar comum tanto na filosofia como nas religiões ocidentais, de que a criatura humana seria radicalmente diferente, qualitativamente falando, dos outros animais. Em face dessa visão, até a palavra "outros", nesse contexto, incomodaria. Existiriam homens (e mulheres, por certo - refiro-me ao ser humano, mas vou evitar o termo, que é machista), de um lado, e animais, de outro. Essa seria a explicação para a perplexidade da Rainha Vitoria quando pela primeira vez viu um primata, levado a um Zoológico em Londres em 1835, achando-o "desagradavelmente humano".

Em razão disso, assentou-se a compreensão, no âmbito da Filosofia e do Direito, de que a moral e o senso de justiça, a depender da postura adotada, seriam ou fruto da religião, ou pura "criação" da razão humana.

O estudo da biologia, porém, aponta, com cada vez maior profundidade, a inexistência de fronteiras assim tão claras entre a criatura humana e os outros animais. Não que não haja diferenças, por óbvio, mas que elas são muito menores do que inicialmente se pensava (é que com o pouco a mais que temos fazemos muito!), sendo mais quantitativas do que qualitativas, havendo uma zona cinzenta imensa entre nós e eles. Não apenas se descobrem cada vez mais aspectos "humanos" nos animais, como, também de forma crescente, aspectos "animais" no homem, que não é tão (ou nem sempre tanto) racional quanto se pensava. Freud já o havia intuído, mas, confirmando previsão que ele mesmo fizera, a biologia tem tornado, nas últimas décadas, isso muito mais acentuado.

Merecem leitura, nesse contexto, os livros de Francis de Waal. Eles me foram sugeridos por uma gentil Procuradora da Fazenda Nacional, cujo nome infelizmente não guardei, em face de referências que fiz a esse respeito em evento em Gramado/RS, no qual falei sobre ética nas relações tributárias. Indico, em especial, Good Natured, que nos faz ver o quão ingênuas são as ideias de contrato social, de aspectos "essenciais" à criatura humana que os demais animais não teriam etc. Chimpanzés têm hierarquia, regras "morais", e até rudimentos de "jurisdição", sendo um dos fatores para que o grupo reconheça a autoridade do "macho alfa" a sua habilidade em resolver conflitos de forma equânime e imparcial. E tais fatores foram simplesmente moldados pelo processo de seleção natural, por favorecerem, enormemente, a coesão do grupo, que, por sua vez, facilita consideravelmente a sobrevivência dos que dele fazem parte. Além disso, muitos animais, mas os primatas em particular, alimentam e externam sentimentos de solidariedade e altruísmo, havendo exemplos de amizade, de ajuda aos mais velhos ou aos deficientes, amparo aos doentes etc. Tem-se, aí, excelente terreno para (mais um!) renascimento das ideias do Direito Natural.

As ideias são tão ricas, e fascinantes, que não têm como ser resenhadas aqui. Algo delas já poderia ser encontrado em livros de cientistas como Dawkins, Matt Ridley e Axelrod, ao tratarem da cooperação no âmbito da teoria dos jogos e de sua seleção pelo processo evolutivo, mas nada que se compare à riqueza, ao detalhamento e os dados empíricos que constam dos livros de Waal. Talvez em outro post, ou, melhor, quem sabe eu escreva, em breve, artigo associando-as a aspectos de filosofia moral e política, de forma academicamente mais profunda. Deixo, por enquanto, a sugestão do livro, e a imagem abaixo, que mostra parte da capa do livro, de uma  foto que o ilustra, e um trecho indicativo do que se está dizendo neste post:

A propósito, o seu mais recente livro, "The bonobo and the atheist", que tem excelente versão disponível para Kindle, revisita essas questões e é resumidamente explicado em interessante episódio do programa "Milênio" que entrevista o autor (clique aqui).

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O novo e o velho

Outro dia, vi no facebook o comentário bem-humorado do Prof. Raul Nepomuceno a respeito de um fone para ser conectado em celulares, com design "vintage", lembrando uns telefones que quando eu era criança já eram antigos.

O dispositivo é este que aparece na foto:


E o telefone, que usei muito (e era horrível quando tínhamos pressa em ligar para números com muitos 9), era esse:


O comentário dele era mais ou menos assim: "- Os pesquisadores das fábricas de celular estudam por anos e quebram a cabeça por muito tempo para construir um telefone mais fino, mais leve, com tela sensível ao toque, e então um dos acessórios mais vendidos para ele o transforma em um telefone disponível há 30 anos. É mesmo complexa a criatura humana..."

Ele tem razão. E é curioso mesmo como alguns itens vintage continuam na moda, e às vezes até ressurgem com mais energia do que a que tinham há algumas décadas. Claro que esse ressurgimento às vezes é de forma repaginada, como se dá no design de alguns carros, mas às vezes não. É o caso do vinil, das canetas tinteiro, de alguns cadernos, cada vez mais comuns, e de diversos brinquedos.

Não é que as pessoas que apreciam esses itens antigos sejam avessas à tecnologia. Ao contrário. O sujeito pode ser um entusiasta da tecnologia e, não obstante, gostar, também, de ouvir um vinil, ou de escrever com uma caneta pena. Talvez seja o meu caso. Comecei a usar computadores em 1986. Tinha um TK90X. Depois passei, em 1988, para um MSX Expert. Ainda lembro de procurar álcool isopropílico para limpar o cabeçote do toca-fitas com um cotonete, e assim evitar os "erros de leitura" quando ia carregar programas gravados em fita K7. Os disquetes foram uma novidade que apareceu só algum tempo depois. Comecei a usar a internet em 1994, tendo, antes, montado uma "BBS" (alguém sabe, ou ainda lembra, o que é isso?). Digo isso só para deixar claro que a questão não é de apego ao velho e nem de qualquer espécie de "neofobia". Talvez seja o desejo de lembrar do lado bom de um tempo que já passou. Talvez seja o reconhecimento de que as coisas antigas não são necessariamente ruins só por serem antigas. Não é preciso deixar de ouvir músicas antigas para conseguir ouvir músicas novas, sendo possível apreciar a qualidade delas em todas as épocas. Talvez o mesmo valha para o uso de certo acessórios.

É claro que não vou responder a um orientando, com pressa pelas revisões em sua dissertação de mestrado, com uma carta escrita à mão, com uma caneta de vidro, a ser fechada com selo de cera quente e enviada pelo correio. O email é muito mais prático. Mas para acompanhar um presente a um amigo, por exemplo, a primeira opção pode ser mais indicada, e prazerosa de ser executada.

E como a internet realmente tem de tudo, nela encontrei pessoas com as mesmas manias. Há até quem faça um "ranking" de tintas (que, depois percebi, faz todo o sentido), vendo nelas qualidades que olhos ignorantes jamais perceberiam. É, realmente, a simplicidade está apenas na superfície, em qualquer assunto: do mesmo modo como, para quem não conhece, todos os vinhos são iguais, todas as bolsas de mulher são iguais, todos o carros são iguais, todos os charutos são iguais, e para quem conhece há um universo de variações a serem exploradas, o mesmo pode ser dito de tintas, canetas e papéis. O vídeo abaixo, que faz uma "resenha" de uma belíssima tinta da noodler´s, é uma boa indicação disso:
 
 
 
Mas este post, que começou "nada a ver" e terminou ainda mais, já está ficando demasiadamente longo. Em outros, talvez, volte ao assunto, cuidando com mais vagar de tintas, moleskines e canetas.

domingo, 1 de setembro de 2013

O que é real?

Raquel Machado mostrou-me hoje pela manhã esse poema, que é a pura epistemologia:

Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de MimSeja o que for que esteja no centro do Mundo, 
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade, 
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento, 
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior, 
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim. 

Ser real quer dizer não estar dentro de mim. 
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. 
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. 
Estou mais certo da existência da minha casa branca 
Do que da existência interior do dono da casa branca. 
Creio mais no meu corpo do que na minha alma, 
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade. 
Podendo ser visto por outros, 
Podendo tocar em outros, 
Podendo sentar-se e estar de pé, 
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora. 
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente 
                               existe — 

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo 

Se a alma é mais real 
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes, 
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade" 

Se é mais certo eu sentir 
Do que existir a cousa que sinto — 
Para que sinto 
E para que surge essa cousa independentemente de mim 
Sem precisar de mim para existir, 
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível? 
Para que me movo com os outros 
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos 
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo? 
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente. 
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas. 
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo. 

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente? 
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida, 
Nos meus dias de perfeita lucidez natural, 
Sinto sem sentir que sinto, 
Vejo sem saber que vejo, 
E nunca o Universo é tão real como então, 
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim. 
Mas) tão sublimemente não-meu. 

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"? 
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"? 
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia? 
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, 
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto. 

Sim, antes de sermos interior somos exterior. 
Por isso somos exterior essencialmente. 

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo. 
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia, 
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha, 
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu? 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa (veja outros em www.citador.pt
)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Processo Tributário e Coerência

Estou a preparar a 7.ª edição do "Processo Tributário", para lançamento no início de 2014, provavelmente já de acordo com o novo CPC. Sugestões são bem-vindas.




Mas, por falar nessa atualização, fazendo-a deparei-me com a seguinte decisão, publicada no último informativo do STJ:


DIREITO TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. PENHORA, POR DÍVIDAS TRIBUTÁRIAS DA MATRIZ, DE VALORES DEPOSITADOS EM NOME DE FILIAIS. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).
Os valores depositados em nome das filiais estão sujeitos à penhora por dívidas tributárias da matriz. De início, cabe ressaltar que, no âmbito do direito privado, cujos princípios gerais, à luz do art. 109 do CTN, são informadores para a definição dos institutos de direito tributário, a filial é uma espécie de estabelecimento empresarial, fazendo parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica, partilhando os mesmos sócios, contrato social e firma ou denominação da matriz. Nessa condição, consiste, conforme doutrina majoritária, em uma universalidade de fato, não ostenta personalidade jurídica própria, nem é sujeito de direitos, tampouco uma pessoa distinta da sociedade empresária. Cuida-se de um instrumento para o exercício da atividade empresarial. Nesse contexto, a discriminação do patrimônio da sociedade empresária mediante a criação de filiais não afasta a unidade patrimonial da pessoa jurídica, que, na condição de devedora, deve responder, com todo o ativo do patrimônio social, por suas dívidas à luz da regra de direito processual prevista no art. 591 do CPC, segundo a qual "o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei". Cumpre esclarecer, por oportuno, que o princípio tributário da autonomia dos estabelecimentos, cujo conteúdo normativo preceitua que estes devem ser considerados, na forma da legislação específica de cada tributo, unidades autônomas e independentes nas relações jurídico-tributárias travadas com a administração fiscal, é um instituto de direito material ligado ao nascimento da obrigação tributária de cada imposto especificamente considerado e não tem relação com a responsabilidade patrimonial dos devedores, prevista em um regramento de direito processual, ou com os limites da responsabilidade dos bens da empresa e dos sócios definidos no direito empresarial. Além disso, a obrigação de que cada estabelecimento se inscreva com número próprio no CNPJ tem especial relevância para a atividade fiscalizatória da administração tributária, não afastando a unidade patrimonial da empresa, cabendo ressaltar que a inscrição da filial no CNPJ é derivada da inscrição do CNPJ da matriz. Diante do exposto, limitar a satisfação do crédito público, notadamente do crédito tributário, a somente o patrimônio do estabelecimento que participou da situação caracterizada como fato gerador é adotar interpretação absurda e odiosa. Absurda porque não se concilia, por exemplo, com a cobrança dos créditos em uma situação de falência, em que todos os bens da pessoa jurídica (todos os estabelecimentos) são arrecadados para pagamento dos credores; com a possibilidade de responsabilidade contratual subsidiária dos sócios pelas obrigações da sociedade como um todo (arts. 1.023, 1.024, 1.039, 1.045, 1.052 e 1.088 do CC); ou com a administração de todos os estabelecimentos da sociedade pelos mesmos órgãos de deliberação, direção, gerência e fiscalização. Odiosa porque, por princípio, o credor privado não pode ter mais privilégios que o credor público, salvo exceções legalmente expressas e justificáveis. REsp 1.355.812-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/5/2013.


 O entendimento parece correto, pois, de fato, conquanto dividida para fins de organização entre matriz e filiais, a pessoa jurídica é uma só, devendo todo o seu patrimônio responder por suas dívidas. É muito importante, porém, que a jurisprudência seja COERENTE, lembrando-se que o Direito é, como gosta de dizer o Prof. Hugo de Brito Machado (pai), uma via de mão dupla. A mesma tese que "vai", beneficiando uma parte, pode, em situação contrária, "voltar", beneficiando a outra. Não se concebe que as coisas sejam idealizadas de uma forma, para beneficiar a Fazenda, e de outra, contraditória com a primeira, quando a situação se inverte, para também beneficiar a Fazenda, sempre prejudicando o cidadão que com ela se tem de relacionar. Isso corrói a legitimidade do próprio Direito.

Digo isso em razão do entendimento - incoerente com o acima indicado, e, este sim, equivocado - segundo o qual uma ação de restituição do indébito não poderia ser ajuizada pela matriz, para rever tributo que teria sido pago pela filial. É conferir:

TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. CONTRIBUIÇÃO AO INCRA. ILEGITIMIDADE ATIVA DA MATRIZ PARA BUSCAR A REPETIÇÃO DE VALORES RECOLHIDOS INDEVIDAMENTE POR SUAS FILIAIS.
1. Nos termos da jurisprudência pacífica desta Corte, em se tratando de tributo cujo fato gerador operou-se de forma individualizada tanto na matriz quanto na filial, não se outorga àquela legitimidade para demandar, isoladamente, em juízo, em nome das filiais. Isso porque, para fins fiscais, ambos os estabelecimentos são considerados entes autônomos.
2. Precedentes: AgRg no AREsp 73.337/MA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 06/12/2011, DJe 13/12/2011; EDcl no AgRg no REsp 1.075.805/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 05/03/2009, DJe 31/03/2009; AgRg no REsp 642.928/SC, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 06/03/2007, DJ 02/04/2007, p. 233.
Agravo regimental improvido.
(AgRg nos EDcl no REsp 1283387/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/04/2012, DJe 19/04/2012)

 
Com todo o respeito, são precisamente os argumentos usados no julgado que reconhece que todo o patrimônio da pessoa jurídica responde por suas dívidas (não importando se contraídas pela matriz ou pela filial) que indicam o equívoco do entendimento consolidado neste último julgado. A autonomia dos
estabelecimentos, seja para fins de ICMS, IPI, ou qualquer outro tributo, destina-se a facilitar o cálculo e a cobrança do tributo, mas não afasta a idéia de que a pessoa jurídica é uma só. E mais: se a pessoa jurídica é uma só quando é devedora, sendo demandada pelo Fisco, qual a lógica de considerar matriz e filiais como "entes diversos" para fins de reconhecimento da legitimidade para pleitear a restituição de tributo pago indevidamente? É preciso ter um pouco mais de atenção à coerência, e, sobretudo, à efetividade da tutela jurisdicional, evitando-se a criação de situações como esta, dignas de um enredo kafkiano.